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What's up, Doc ciclo de cinema «Comédia e anarquia no cinema americano»

What’s up, Doc? | ciclo de cinema «Comédia e anarquia no cinema americano»

Terceiro filme do 𝐜𝐢𝐜𝐥𝐨 𝐝𝐞 𝐜𝐢𝐧𝐞𝐦𝐚 «𝐂𝐨𝐦𝐞́𝐝𝐢𝐚 𝐞 𝐚𝐧𝐚𝐫𝐪𝐮𝐢𝐚 𝐧𝐨 𝐜𝐢𝐧𝐞𝐦𝐚 𝐚𝐦𝐞𝐫𝐢𝐜𝐚𝐧𝐨»

Uma proposta de Narciso Miranda.

Este ciclo de cinema e os textos escritos em torno dos respectivos filmes terão como objectivo identificar e problematizar, no contexto do cinema cómico americano, por um lado, a dupla valência do termo anarquia, ora entendido como mero caos/desestabilização, ora como atentado crítico-ideológico a uma determinada ordem de realidade; por outro lado, a presença de uma função sublimatória ou libertadora no riso (e na comédia enquanto dispositivo que o deve produzir e sistematizar), o que torna possível aos dispositivos cómicos tecer uma crítica da própria sociedade que lhe exigiria o acto de conformidade.

Quatro filmes da cinematografia estado-unidense que poderão ajudar a contextualizar e problematizar estes elementos. Estes filmes pretendem resumir e esquematizar uma breve “história” da comédia no cinema americano, dando assim conta de diversos períodos, subgéneros, estilos e modos de produção: do início do sonoro ao cinema moderno, da sátira à paródia, do 𝘴𝘭𝘢𝘱𝘴𝘵𝘪𝘤𝘬 aos gags textuais, do contexto do 𝘴𝘵𝘶𝘥𝘪𝘰 𝘴𝘺𝘴𝘵𝘦𝘮 ao cinema marginal e independente.

Apresentação, programação e folhas de sala: Narciso Miranda.

Segundas-feiras às 21h30. Filmes legendados em português.

 

*** 𝗔𝗽𝗿𝗲𝘀𝗲𝗻𝘁𝗮𝗰̧𝗮̃𝗼 𝗱𝗼 𝗰𝗶𝗰𝗹𝗼: O termo comédia surge na Grécia antiga, aplicando-se a obras teatrais que punham em cena um conflito entre grupos sociais distintos, com o intuito de ridicularizar a tensão ideológica entre esses mesmos grupos e de assim produzir o riso. A comédia é então, e pelo menos desde o seu início na história ocidental, o lugar possível de um gesto político capaz de produzir efeitos decisivos na organização e gestão democrática da pólis (justamente, o lugar da “política”). Poderíamos, pois, afirmar que a comédia enquanto género diz respeito a uma determinada sistematização do riso entendido enquanto prática social, sendo o riso em si mesmo catalisado por um sem-número de dispositivos ditos “ficcionais” (logo, ilibados dos juízos morais que geralmente atribuímos às coisas “reais”). Descobria-se assim no teatro grego que o riso desempenha uma função crítica e ideológica, que rir é um acto que pouco ou nada tem de supérfluo, muito menos de gratuito, e que a comédia, na sua pretensa “não-seriedade”, pode muito bem ser mais séria, tanto em termos de rigor do dispositivo formal como de alcance do efeito político, do que a mais séria das tragédias (e isto, justamente, numa relação inversamente proporcional: quão mais absurdo for um gesto cómico, maior ressonância crítica poderá ele alcançar, pois o nonsense liberta-nos, sem dúvida, das pretensões normativas e conservadoras da moralidade). Mesmo na comédia aparentemente trivial, escatológica ou absurda, o que está em causa é sempre uma certa perturbação da ordem, da norma, do código, da expectativa ou, simplesmente, da regularidade que estrutura e dá sentido aos acontecimentos (a inversão é assim uma das figuras de estilo preferidas pela comédia: da troca de papéis aos jogos polissémicos da linguagem, passando pela ressignificação dos objectos e das suas funções). O desprezo de que a comédia foi alvo ao longo de tantas épocas (sendo-lhe com frequência atribuído um estatuto inferior no contexto da ficção, dos géneros, etc.) não teve senão como objectivo, mais ou menos dissimulado, o de lhe expurgar toda a sua dimensão crítica e subversiva para que assim se pudesse preservar a ordem estabelecida do poder. E, de facto, do actor slapstick que depois de uma deixa gloriosa inesperadamente escorrega na casca de banana ao humorista que ridiculariza os grandes disparates que dizem os magnatas políticos como Donald Trump, o que se descobre de comum em ambas as situações é a subversão/desconstrução de uma determinada ordem das coisas, seja essa ordem da esfera privada do quotidiano (e dos seus acontecimentos que nos parecem quase insignificantes – mas talvez não o sejam) ou então da esfera pública e institucional (e dos seus acontecimentos que consideramos decisivos para o curso da história e do mundo). Em escala micro ou macro, sabemos bem que tudo é político, mas o que aqui nos interessa é que na comédia o político se liga, necessariamente, e como tenho insistido, a um qualquer efeito de desconstrução (constituindo assim o absurdo o seu grau mais radical). É essa, sem dúvida, a sua característica fundamental. No entanto, e a um tal nível de abstracção esquemática (o “político” em toda a sua generalidade terminológica), não nos é ainda possível determinar no cómico uma orientação ideológica precisa. Afinal, o mesmo humorista pode usar a sua técnica para escarnecer Donald Trump ou então para ridicularizar uma minoria. O alcance político-ideológico do cómico, a um nível especificamente determinado, define-se, pois, pela relação concreta que o humor estabelece com os seus “alvos”. Poderíamos dizê-lo da seguinte maneira: de quem rimos nós quando nos rimos?

Este ciclo de cinema pretende jogar com a dupla valência do termo anarquia. Por um lado, a anarquia é entendida pelo sistema dominante como uma forma de desordem total, uma desgovernação, um estado de caos. Por outro lado – e para xs anarquistas em primeiro lugar – a anarquia refere-se a um sistema ideológico que contesta o sistema dominante, logo, que propõe uma ordem alternativa das coisas (no fim de contas, a anarquia só implica desordem ou caos para aquelxs que defendem a ordem vigente do status quo). Pela dimensão subversiva e capacidade de desconstrução que lhe é inerente a comédia tem sido invariavelmente anárquica ao longo dos tempos (é importante referir aqui que a utilização do termo “anárquico” me permitirá jogar com uma certa ambivalência de sentido que, por exemplo, o termo “anarquista”, muito mais preciso ideologicamente, não permitiria). Como vimos, tanto na sua génese histórica e política, como enquanto dispositivo formal e estético, a comédia definiu-se por uma relação profundamente crítica face à ordem social vigente (a sátira, a paródia, a caricatura, o ridículo ou o absurdo são formas ou subgéneros da comédia de cujo alcance político estaremos todxs bastante conscientes), mas houve quem lhe atribuísse uma função bem diferente da que aqui propomos. De facto, o filósofo Henri Bergson escreveu em 1900 um ensaio bastante singular em que defendia que a comédia e o riso tinham como função humilhar ou ridicularizar aquelxs que entravam em “crispação contra a vida social”, que não possuíam suficiente “elasticidade” para se adaptarem, que ficavam presos na sua “vida interior.”

«É cómica a personagem que segue automaticamente o seu caminho sem se preocupar com entrar em contacto com os outros. O riso surge para corrigir a sua distração ou para a arrancar ao seu sonho. (…) Sempre algo humilhante para quem é seu objecto, o riso constitui na verdade uma espécie de reprovação social.»

Para Bergson só nos podemos rir daquelxs que nos deixaram de comover. Tornar cómico é tornar ridículo, é humilhar, pelo que o riso seria então uma força marcada pelo seu poder essencialmente repressivo e corrector, como se no riso de cada umx dxs espectadorxs residisse necessariamente toda a potência normalizadora da sociedade. Rir-nos-íamos então daquelxs que se recusam a adaptar, que não se moldam à ordem dominante, daquelxs cuja liberdade entra em conflito com a necessidade da maioria, daquelxs que são se dão ao luxo de ser distraídxs e que por isso não possuem elasticidade suficiente para se adaptarem ao seu contexto, às situações do dia-a-dia, ao fluxo “necessário” dos acontecimentos: quando nos rimos da personagem que escorrega numa casca de banana estaríamos na verdade a corrigi-la, a censurar a sua incapacidade de se adaptar, de se desviar a tempo, de ser suficientemente elástica para reagir à situação.

Mas, e se Bergson estiver parcialmente errado? E se não nos rirmos apenas “das” pessoas, mas também “com” as pessoas? Não poderá o riso ser, no fim de contas, um acto solidário e empático? Porque estará Bergson tão certo de que o riso implica uma necessária insensibilidade para com aquelx de quem nos rimos? E não poderia servir esta tese duvidosa como álibi para todxs xs humoristas que fazem do seu ofício a ridicularização dos estratos mais vulneráveis da sociedade?

Ora, não seremos nós capazes de sentir empatia pelas personagens demasiado ridículas, grotescas, azarentas, aquelas a quem tudo corre mal mesmo quando são bem-intencionadas? Não poderá ser o riso direccionado, senão contra a sociedade enquanto totalidade abstracta (e que assim nos pareceria de existência duvidosa), pelo menos contra determinada ordem social vigente (e não o oposto, como defende Bergson, uma espécie de recriminação social dirigida ax sujeitx inadaptadx)? Não poderá existir no riso daquelx que ri um qualquer desejo de ser como aquelx de quem nos rimos: umx inconveniente, umx distraídx, umx inconformadx, alguém para quem a ordem, a expectativa ou a normalidade pouco interessam? Nesse caso, o riso não cumpriria já uma função repressiva, mas sim uma função sublimatória, em que o que está em causa não seria tanto a recriminação da vida interior, onírica e inconformada da personagem que nos faz rir, mas sim (inversamente) o nosso próprio conformismo face aos valores dominantes da sociedade (não é sem razão que as personagens cómicas são quase sempre extravagantes, exageradas, tontas, distraídas, etc.: elas vivem num outro mundo que não o nosso – padronizado, repressivo, moralista – e, acima de tudo, é isso que tanto nos fascina nelas). Segundo a tese que aqui proponho já não nos riríamos tanto dx outrx, isto é, da personagem cómica ou mesmo daquelx que involuntariamente se torna cómicx, mas antes, e através de um “desvio inconsciente”, de nós mesmxs por não sermos tão livres, tão despreocupadxs, tão absurdxs quanto elx. Ou melhor, se nos rimos, de facto, dx outrx, é apenas porque gostaríamos de ser como elx e não somos (a personagem cómica materializa dessa forma nas suas acções a liberdade que intimamente desejamos para nós mesmxs). No entanto, não é que Bergson não tenha a sua razão: é evidente, como bem o sabemos, que o riso pode ser uma arma de humilhação e de censura. Mas não se resume apenas a isso. O riso também pode ser uma arma de libertação e de empoderamento. Uma forma de sublimarmos, através do jogo mais ou menos ficcional da comédia, o nosso próprio desejo de rotura e de liberdade, desejo esse sistematicamente restringido pela nossa conformidade ao código, à regra e à norma.

Este ciclo de cinema e os textos escritos em torno dos respectivos filmes terão como objectivo identificar e problematizar, no contexto do cinema cómico americano, os seguintes elementos: por um lado, a dupla valência do termo anarquia, ora entendido como mero caos/desestabilização, ora como atentado crítico-ideológico a uma determinada ordem de realidade (e veremos como ambas as formas podem, no fim de contas, ser simultâneas ou equivalentes); por outro lado, a presença de uma função sublimatória ou libertadora no riso (e na comédia enquanto dispositivo que o deve produzir e sistematizar), o que torna possível aos dispositivos cómicos tecer uma crítica, já não dx indivídux distraídx e inadaptadx (como em Bergson), mas sim da própria sociedade que lhe exigiria o acto de conformidade. Pretendo assim mostrar-vos quatro filmes da cinematografia estado-unidense que poderão ajudar a contextualizar e problematizar estes elementos. Estes filmes pretendem resumir e esquematizar uma breve “história” da comédia no cinema americano, dando assim conta de diversos períodos, subgéneros, estilos e modos de produção: do início do sonoro ao cinema moderno, da sátira à paródia, do slapstick aos gags textuais, do contexto do studio system ao cinema marginal e independente.

 

𝗙𝗶𝗹𝗺𝗲𝘀 𝗮 𝗲𝘅𝗶𝗯𝗶𝗿:

𝗗𝘂𝗰𝗸 𝘀𝗼𝘂𝗽, de Leo McCarey (1933)

𝗪𝗶𝗹𝗹 𝘀𝘂𝗰𝗰𝗲𝘀𝘀 𝘀𝗽𝗼𝗶𝗹 𝗥𝗼𝗰𝗸 𝗛𝘂𝗻𝘁𝗲𝗿?, de Frank Tashlin (1957)

𝗪𝗵𝗮𝘁’𝘀 𝘂𝗽, 𝗗𝗼𝗰?, de Peter Bogdanovich (1972)

𝗣𝗶𝗻𝗸 𝗳𝗹𝗮𝗺𝗶𝗻𝗴𝗼𝘀, de John Waters (1972)

What’s up, Doc? | ciclo de cinema «Comédia e anarquia no cinema americano»

Data

18 Set 2023
Desde

Hora

21:30

Localização

Casa da Achada - Centro Mário Dionísio
Rua da Achada, 11, R/C - Lisboa
Categorias

Teatro

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